O sorvete – por Carlos Drummonde de Andrade
Há algum tempo atrás eu pedi, quer dizer atormentei, a Júnia pedindo esse texto maravilhoso do Drummond, ela me mandou e eu decidi usá-lo para estrear mais uma coluna do Portal do Rossi, Gastronomia nas Artes, dentro da Seção Arte e Cultura, ideal para quem entende que nossos prazeres acabam estando interligados. E Júnia, mais uma vez e agora publicamente, obrigadíssimo.
O Sorvete – Carlos Drummond de Andrade
“Quando chegamos ao colégio, em 1916, a cidade teria apenas cinqüenta mil habitantes, com uma confeitaria na rua principal, e outra na avenida que cortava essa rua. Alguns cafés completavam o equipamento urbano em matéria de casas públicas de consumação e conversa, não falando no espantoso número de botequins, consolo de pobre…”
Acho que Belo Horizonte, desde aqueles tempos, estava mesmo predestinada a ser a capital dos botecos e da boa comida. O texto de Drummond já começa com a descrição da cidade e, como não podia deixar de ser, imperavam os cafés, botequins e confeitarias. Acho mesmo que já vem dessa época a tendência mineira de encontrar-se com os amigos nesses ambientes, petiscos a postos, copo na mão e muitos, muitos “causos” pra contar…
“… A caminho do cinema, a dois passos dele, na rua principal, está a confeitaria, a cuja porta é grato a gente deter-se, ante as formas caprichosas e coloridas que ali se dirigem simultaneamente a vários sentidos. Certos bolos e cremes, antes de serrem degustados pela boca ávida, o são pelo nariz e pelos olhos, e, se no-lo permitissem, o seriam pelas mãos, que amariam verificar a maciez, a doçura e a delicadeza da pasta. Único sentido não beneficiado, o ouvido permaneceria alheio a essa fruição geral, se não chegassem até ele os ruídos normais numa casa onde se come, choque de louça no mármore, de metais na louça, pequenos rumores familiares a que se ligam imemorialmente as sensações do paladar, e que tanto contribuem para a composição desse extraordinário prazer de comer.
Estávamos absortos na contemp`lação ritual, misto de atenção a formas simbólicas, e de sonho em torno de idéias complexas que elas sugeriam- ali, diante daqueles pudins e daqueles roxos, amarelos, solferinos, verdes e róseos montículos de açúcar, geléia, ovo, frutas cristalizadas e invisível manteiga, quando um objeto vulgar, mas insólito no lugar onde se achava, me captou o interesse. Encostado a uma das três portas da confeitaria, do lado da calçada, um quadro-negro propunha-nos os seguintes dizeres em giz branco:
HOJE
Delicioso sorvete de
ABACAXI
Especialidade da casa
HOJE!
… Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e lisa da palavra ‘delicioso’?…”
Hoje em dia jamais imaginaríamos que o simples ato de tomar um sorvete pudesse ser relacionado a tortura, a um sofrimento atroz. Talvez naquele instante o sorvete saísse da vida daqueles pobres meninos interioranos para sempre. Mas o pior estava por vir: o dinheiro não chegava!
Júnia Brina Marques, mineira, mãe e mulher. Formada em Letras pela UFMG e especializada em aulas de português para estrangeiros e traduções (espanhol-português). Há dez anos morando na Argentina, divide as seu tempo entre o trabalho e a cozinha, onde reúne família e amigos num eterno festival gastronômico. E é daquelas que ainda acredita que a sedução começa quando se prova o primeiro bocado… Para traduções consulte: juniabrina@hotmail.com